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Que tal? Tudo a exigir, nada a agradecer, por Eugênio Afonso

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Da redação

Como nada a pedir? Você vive em que mundo?

Que tal? Tudo a exigir, nada a agradecer, por Eugênio Afonso
Portal do Casé

O mantra 'nada a pedir, tudo a agradecer' é um libelo direitista disfarçado de uma suposta alegria debiloide e sem sentido. E tem mais: ele está, mais uma vez, acomodando a sociedade brasileira, já que é um ato antirrevolucionário e, por isso mesmo, extremamente perigoso e nocivo.

Como nada a pedir? Você vive em que mundo? E o saneamento básico que falta para milhões de terrestres, e a péssima distribuição de renda que ronda o planeta, e o inexistente sistema de saúde pública decente, e a educação sucateada?

E os sem teto, sem afeto? E os idosos em abrigos desiguais? E as mães menininhas abortando em espaços insalubres? E as crianças nos semáforos? E os penduricalhos dos soldos dos servidores públicos? E os LGBT+ cruelmente assassinados? E as pessoas recolhendo restos nos lixos?

As pessoas precisam perceber que esse mantra cristão do 'agradecimento' só interessa, e muito, aos que estão em posição de comando. Quanto mais acomodado estiver o cidadão comum, agradecendo por tudo o que não tem, e aceitando que uma vida miserável é a vida possível, melhor para, entre outras coisas, desviar os milhões que nunca serão distribuídos. Recursos que teriam que ser usados para o bem estar de muitos e cai no bolso de tão poucos.

É preciso parar de agradecer por tão pouco, quase nada. Já passou da hora de exigir uma vida digna e, quem sabe um dia, agradecer por ter sido respeitado enquanto cidadão.

Esses dias, estava voltando a pé de nem sei onde, e ouvi um pobre coitado dizer que não tinha nada a pedir e só a agradecer...ele estava trajado com farrapos, mal alimentado e não tinha teto...faltava dentes e o olhar era perdido.

Quando passei por ele e ouvi aquele mantra, me subiu uma angústia e uma tristeza imensas. Tive vontade de voltar lá, sacudir o homem e dizer: desce daí e pisa na terra. Caso contrário, seguiremos agradecendo por nada e não estaremos exigindo – sim, porque o verbo nem é pedir - o mínimo necessário para respirar dignamente.

Além do mais, esse ranço religioso que essa expressão carrega me infla o fígado, embrulha o estômago e causa ânsia de vômito. É uma questão de, no mínimo, empatia. Como se acomodar com uma vidinha que beira a mediocridade se tantos irmãos terrenos estão à míngua? Falta-lhes comida e afeto. Falta-lhes dignidade e respeito.

Quem sabe um dia eu consiga entender que essa falta de humanidade possa ser agradecida como algo além do que se vê. Mas, por enquanto, não dá, não consigo, e cada vez que ouço 'nada a pedir, tudo a agradecer' ainda fico sem chão.

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