Quando a imagem de Nossa Senhora Imaculada Conceição atravessou o mar, a pedido de Thomé de Souza, e aportou na Bahia, não era possível imaginar que a devoção à então padroeira de Portugal seria tão intensa que a tornaria, anos mais tarde, a padroeira excelsa e única da Bahia, e com um novo nome: Nossa Senhora da Conceição da Praia. No próximo dia 8 de dezembro, quando é comemorado o dia da santa, a celebração também completa 474 anos. Esta é a festa religiosa mais antiga do país.
Neste ano a missa solene está prevista para ocorrer às 8h30 na Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia, no Comércio. Depois, será realizada a procissão e, após as imagens retornarem à basílica, será realizada a solenidade de Benção do Santíssimo, que marca o fim dos ritos religiosos no dia para que baianos e turistas possam aproveitar a festa pagã no entorno da igreja.
Como manda a tradição secular, o cortejo com as imagens de Nossa Senhora da Conceição da Praia e do Deus Menino saem pelas ruas do bairro do Comércio, passando pela Avenida da França, encontrando a imagem de São José na Capela do Corpo Santo, que fica localizada na esquina da Praça Cairu, e retornam para a igreja. O festejo, que parte da dedicação de uma legião de fiéis não só da capital mas de todo o estado, é consagrado e possui uma simbologia forte para a cultura de Salvador.
O professor de História da Bahia Murilo Mello conta que algumas peculiaridades da história de Nossa Senhora da Conceição da Praia, da construção da igreja e da celebração a ela ainda não são conhecidas por todos. O título que faz referência ao mar no nome da santa, por exemplo, foi atribuído a ela porque as águas da Baía de Todos-os-Santos batiam na primeira capela erguida para a veneração da padroeira.
Essa capela foi fundada em 1549, a pedido do primeiro governador-geral da Bahia, Thomé de Souza. Inclusive, primeiro foi erguida de forma simples, porque em Salvador não havia pedreira em atividade e não era possível construir edificações grandiosas como conhecemos nos estilo barroco e neoclássico.
“Thomé de Souza manda fazer a capela, e tem fontes que relatam que ele participou dessa construção. O primeiro ano já tem festa e ela se torna o festejo religioso mais antigo do Brasil. A manifestação religiosa, portanto, tem uma pungência de identidade, memória e história fabulosa não só para a Bahia, mas para o Brasil inteiro. E essa edificação religiosa vai ser uma das primeiras do Brasil também”, explicou.
A construção é tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e, em 1946, foi elevada à sacrossanta basílica pelo Vaticano. Dentro é preservada a “igreja primitiva”, onde a igreja “começou”.
DETALHES
A igreja passou por reformas ao longo do tempo e, no ano de 1739, a família Albuquerque deu início à construção do templo como conhecemos atualmente. Situada aos pés da montanha que liga a cidade Alta à Baixa, a basílica como conhecemos hoje só foi concluída 110 anos depois, em 1849.
São inúmeras as curiosidades sobre a basílica. As pedras usadas na construção são de lioz, um tipo de calcário português usado como rocha ornamental na época para a construção de elementos estruturais. Estas pedras vieram numeradas de Portugal para cá em embarcações, o que era demorado e custoso. Aos poucos os construtores iam montando a igreja como quem monta um quebra-cabeças.
Outra curiosidade é que Santa Dulce dos Pobres, que faleceu em 1992, foi sepultada na basílica. Em janeiro de 2000, quando começou o processo de beatificação da primeira santa brasileira, os restos mortais de Irmã Dulce foram transferidos para a Capela do Convento Santo Antônio, sede das Obras Sociais que levam o nome dela, no Largo de Roma.
Para o historiador, é importante observar que a basílica possui características que a destacam na história. “Ela possui um aspecto imponente, unindo os estilos barroco e neoclássico, tem pilares diagonais e não arredondados, como na forma românica. O teto traz o ilusionismo e renascentismo italiano”, afirmou Melo.
Há ainda diversas histórias que permeiam a igreja. Acredita-se que uma fonte, presente na área interna e aberta do local, foi dada como doação para homenagear uma adolescente que faleceu precocemente pela família, que era dona de terras na região onde hoje está o bairro do Rio Vermelho.
Milagres – Incontáveis histórias de devoção estão atribuídas à Nossa Senhora da Conceição da Praia. A santa possui a Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora da Conceição da Praia, fundada em agosto de 1645, que se dedica a cuidar da basílica e da preservação da devoção à santa. Com 900 membros voluntários cadastrados, a irmandade cuida da preservação da festa.
Presidente da comissão que organiza as celebrações em homenagem à Conceição da Praia há dez anos, Gabriela Dias Gonçalves, 43 anos, conta que sua vida está entrelaçada à santa. “Desde criança acompanhava meus pais nas missas e atividades da igreja. Com o passar dos anos eu fui criando essa tradição também. Na época que fui prestar vestibular, achei que seria muito difícil passar e pensei em me apegar a algum santo para que meu sonho fluísse. Comecei a frequentar a igreja por escolha e fui aprovada em Economia e Direito. E não parei por aí. Aqui eu fiz três pós-graduações e passei no mestrado. Tudo pela Ufba, que é ainda mais difícil”, recordou.
Sua dedicação, contou, tem sido alimento inclusive para superar batalhas impensáveis, como a morte do esposo. “Por meio da Igreja da Conceição conheci uma pessoa que frequentava a Basílica do Bonfim. Nos relacionamos por 12 anos. Mas sei que Deus nos prepara para tudo. Aqui eu me casei, em 5 de novembro de 2022, e em janeiro deste ano meu esposo faleceu. Sabia que certas coisas tinham que acontecer para que eu me fortalecesse ainda mais na fé e, sobretudo, ajudando pessoas que precisam e que a igreja não se volta”, relata emocionada.
Com a própria experiência de vida, Gabriela Gonçalves afirma que, por isso, o trabalho da irmandade é tão importante. Através dele, conta, existe o dever de conservar o culto ao Santíssimo Sacramento e à Nossa Senhora da Conceição da Praia para que a devoção aumente a cada dia. “Esse espaço é do povo. Há muitos anos era uma irmandade mais fechada, mas isso veio mudando. Todos somos iguais e a igreja precisa estar aberta para todos. Muitas vezes é a pessoa mais simples que nos dá a maior lição de vida. Por isso, nosso objetivo hoje é acolher a quem tem sede”, concluiu.
RITOS DE CELEBRAÇÃO E FÉ
A igreja também participa como protagonista em outras manifestações religiosas presentes no calendário de festas populares da capital. É de lá, por exemplo, que tem início o cortejo do Senhor do Bonfim, em janeiro, que vai até a basílica na Colina Sagrada, e o cortejo da festa de Bom Jesus dos Navegantes, que acontece na virada do ano.