Era uma vez um móvel chamado estante. Ele frequentava todas as casas. Das mais nobres às mais pobres. Costumava ser vistoso e o orgulho dos moradores. Tinha gente que o exibia cheio de pompa.
Estavam lá livros, de Vargas Llosa a Saramago, passando por Machado, discos de Chico, Gal, Zizi, Tetê, Belchior, Gil, Bethânia, Vanessa, Nana, Chet Baker, Aretha, Nina, Sade, DVDs de Woody Allen, Baz Luhrmann e Wong Kar-Wai, porta-retratos, plantas e objetos de decoração.
Com o tempo, o vinil deu lugar ao CD, mas a estante ainda se sentia útil, afinal os CDs precisavam de uma casa pra chamar de sua. E ela lá toda pomposa, retratando o dia a dia dos moradores. Ali, naquelas prateleiras outrora tão requisitadas, dava para desvendar um pouco de cada pessoa que habitava aquele espaço.
Com o passar do tempo e a evolução tecnológica, a estante foi ficando de escanteio e tendo cada vez menos serventia. Foi ficando murcha, amarelada, sem graça. Mas ainda assim, resistia.
Passaram-se os anos e surgiram os e-books, YouTubes e spotifys da vida. Sempre os norte-americanos se metendo em tudo e ditando as regras. Então, tudo passou a caber em um chipe de, sei lá, cinco centímetros.
Naquele microespaço poderiam ser armazenados milhares, quiçá milhões, de livros, músicas e audiovisuais. Era só decidir como queria ouvir, assistir ou ler. E uma coisa é certa, todo esse material físico que a gente exibia na estante ficou obsoleto. Aliás, ficou obsoleto não, praticamente desapareceu.
Aí a estante murchou de vez. Qual seria agora sua utilidade? Colocar o quê nela? Porta-retratos, plantas e objetos de decoração migraram automaticamente para mesas de canto e centro.
E a estante, assim como a máquina de escrever e a fita cassete, virou objeto de museu. Atualmente, ela pode ser apreciada em uma redoma de um lugar qualquer com o seguinte epitáfio: "hoje fui eu, amanhã pode ser você".