Eu tenho medo de abrir garrafa com rolha. Acho que a garrafa vai quebrar e, no mínimo, vou decepar o dedo. Às vezes até tento, mas começo a transpirar, o nervosismo se aproxima e imediatamente desisto. A rolha nem se mexe.
Outro dia, sozinho em casa, tarde da noite, me acometeu aquela vontade de tomar um vinho. Abri a geladeira e ele estava lá, pedindo 'me abra, divirta-se comigo'. Pensei: 'você é um homem ou um sariguê?' (adoro esta expressão). Aí peguei a garrafa, torcendo para que não fosse de rolha. Tirei o invólucro e a rolha destampou bonita, limpa, cheirosa.
Abri a gaveta, tirei o saca-rolha – porque apesar da noia, tenho um – e fui lá. Olhei, tentei, enfiei o utensílio, mas confesso que nem fiz muito esforço...desisti, não consigo, não tem jeito.
Solução? Pedir ao vizinho, que é bem camarada. Toquei a campainha, sua mulher atendeu com a simpatia de sempre. Expliquei a situação, ela não fez nenhum comentário, só disse: dá aqui que vou levar pra ele.
Alguns segundos depois, volta com a garrafa devidamente aberta. Ofereço um trago, um gole, ela recusa e nos despedimos. Muito obrigado e boa noite!
Voltei pra casa, que era na porta ao lado, enchi a taça e saboreei o momento, que era composto de vinho, amizade, delicadeza, generosidade e boa vizinhança.
Se um não consegue, talvez o outro consiga sem esforço. Se um não pode, talvez o outro possa com sabedoria. Se um não alcança, talvez o outro alcance sem medo. E você vai tentando, levando, caindo, aprendendo, agradecendo, divertindo-se, apreciando, amando.
Para mim, é assim que funciona o caminhar. Quando pensei em pedir o favor ao vizinho, não titubeei. Sabia que seria do jeito que foi. A gente já se relaciona, apesar de pouco, há muitos anos, mais de década. E é sempre assim, uma troca de afabilidades.
Não porque é politicamente correto, mas porque é assim que entendo a construção das relações. Afinal, o que é abrir uma garrafa de vinho para um vizinho incapaz de tal façanha, praticamente um sariguê? Basicamente, um gesto de delicadeza.
Na verdade, talvez seja preferível ter dificuldade em abrir garrafa com rolha, entrar em água que não se enxerga o fundo, em elevador vazio ou cheio demais, do que se aconchegar com gente.
Até porque, vamos combinar, coisa boa - apesar de tantas lástimas -, é essa tal de humanidade.