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Até você, Casé! A última cena que vi de Irmã Dulce e os bastidores inéditos da sua despedida

Data:
Casemiro Neto

A cobertura sobre os dias que antecederam a morte de Irmã Dulce mobilizou toda a imprensa da Bahia e também do país. Foram dias de muitos plantões, "barrigadas" e emoções

Até você, Casé! A última cena que vi de Irmã Dulce e os bastidores inéditos da sua despedida
Divulgação/OSID

No dia 13 de março de 1992, morria a mulher que ficou conhecida como o ‘Anjo Bom da Bahia’ e que, 27 anos depois, tornou-se a primeira santa nascida no Brasil. Nos dias que antecederam a morte de Irmã Dulce, toda a imprensa da Bahia montou plantão em frente às Obras Sociais, no Largo de Roma, na Cidade Baixa, em Salvador. Quando o estado de saúde dela piorou, jornalistas de todo o Brasil vieram para Salvador. Com o passar do tempo, e os boletins médicos, só um milagre seria capaz de salvar Irmã Dulce. Ela sobrevivia com a ajuda de aparelhos. A saúde estava extremamente fragilizada por causa da doença pulmonar que enfrentava há cerca de 50 anos.

Nas frases feitas de jornalistas e publicitários, Irmã Dulce, que chegou a pesar apenas 38 quilos, ficou conhecida como uma “mulher pequena e frágil, mas gigante na bondade.” Caridade, fé e devoção não faltavam nessa filha de um dentista e uma dona de casa que morreu quando Maria Rita Lopes Pontes, o verdadeiro nome da freira, tinha sete anos. Desde que comecei a trabalhar em televisão, na Tv Itapuã, em meados dos anos 80, eu adorava fazer matéria e entrevistas com Irmã Dulce. Sentia que ela tinha um carinho especial por mim, rendia boas reportagens e eu também adorava filar café com bolacha Maria, Cream Cracker ou um pedaço de bolo, quase sempre no quarto, onde ela ficava nas Obras Sociais. Ouço agora, a voz fina e pequena me pedindo um “dinheirinho” para ajudar os pobres. Um olhar cabisbaixo reforçava a sedução do pedido que, quando o repórter podia, era atendido. 

Os plantões dos jornalistas eram marcados por conversas entre os colegas e algumas vezes com a notícia que todo mundo já esperava e queria dar em primeira mão em entradas ao vivo, no caso das rádios e Tvs. Ainda não se falava em Fake News, mas as chamadas “barrigadas” já faziam parte, há tempos, do vocabulário da imprensa. Me lembro de uma vez em que fui acionado pela produção da Tv Bahia, onde trabalhava na época, com a informação de que Irmã Dulce tinha morrido. Discretamente, falei com a equipe que iriamos entrar, ao vivo, com o furo da notícia, em frente à fachada das Obras Sociais. Ainda não foi daquela vez. Logo depois, chegou o desmentido e voltamos para a sala onde a imprensa se reunia.

Foi graças à Irmã Dulce que entrei, pela primeira vez, ao vivo, no Jornal Nacional. Faltava pouco tempo para começar o telejornal de maior audiência da Tv brasileira (com índices bem maiores naquela época) quando o chefe de redação da Tv, o saudoso Antônio Silveira, me avisou pelo rádio (ainda não tinha celular) que eu entraria no JN, após a escalada com as principais notícias do dia. Sempre gostei de links ao vivo. O tempo de profissão e a experiência me deixavam mais tranquilo, mas daquela vez a exigência era maior. Refleti e fiz o que sempre fazia: montei o texto, a base, passei tudo para a edição do jornal e me preparei. Toca a indefectível vinheta, entra Cid Moreira (!!!) e me chama. Deu tudo certo! Os colegas que acompanharam de perto o meu vivo, aplaudiram. Depois soube que, na redação da Tv os amigos também vibraram com a novidade. Até hoje, tenho guardado o fax com a cabeça do link que o então colega Cid me chamou.

A chamada no JN, que guardo até hoje. 

Outra graça que eu credito à Irmã Dulce foi a de ter me livrado de voar de helicóptero. Quem me conhece sabe do pavor que tenho de avião. Imagine de algo que parece uma mosca gigante pelos ares. Estava dentro de uma aeronave desse tipo, em uma base da aeronáutica, no Morro do Gavazza, em Salvador. Não sei o que era mais alto e assustador: o barulho das hélices girando com força ou as batidas do meu coração. Era uma reportagem para sobrevoar e mostrar a beleza das ilhas da Baía de Todos os Santos. Já perto da decolagem, Silveira (ele de novo) grita no rádio para cancelar tudo que Irmã Dulce tinha morrido e eu deveria ir direto para as Obras Sociais. Foi mais um "alarme falso". Tenho certeza que essa foi, para mim, um dos melhores (!?) da minha carreira.

Uma experiência triste e inesquecível que tive nesses anos de jornalismo foi a de ver Irmã Dulce no leito do quarto, poucos dias antes de morrer. O jornal da Globo pediu uma matéria atualizando o estado de saúde da freira. Fui escalado junto com  a equipe formada pelo cinegrafista Sandro Abade e o auxiliar Fábio Marconi. Chegamos às Obras Sociais no começo da noite para fazer a reportagem que ainda seria editada para entrar no telejornal que começava a partir das 11 da noite. Tínhamos pouco tempo. A  minha ideia era a de ir um pouco além das imagens de arquivo, com as informações divulgadas no último boletim médico do dia.

"E que tal  se a gente tentasse entrar no quarto onde está Irmã Dulce?", perguntei e a equipe topou na hora!  Procurei a sobrinha da freira, Maria Rita, que hoje é diretora das Obras Sociais, expliquei como faria a reportagem, prometi que não faria nada que explorasse de forma negativa a imagem de Irmã Dulce. Nenhuma equipe tinha conseguido entrar no quarto da freira. No começo, Maria Rita ficou em dúvida, mas acabou dando o aval. Aí, apareceu um porém, ou melhor, um problema - uma assessora da OSID que vestia a camisa com força extrema nos locais onde trabalhava . Uma  amiga, que também era minha colega de trabalho na Tv. Naquele turno, noturno, ela levava no peito a camisa das Obras Sociais. Depois  de tentar nos impedir com várias negativas verbais, apelou para o físico. Ela abriu os braços, em frente à porta do quarto, e gritou que ninguém passava por ali. Eu revidei, lembrando que ela não era Joana Angélica e que nós iriamos entrar, já com permissão dada por Maria Rita. Entramos! Dentro do quarto, Irmã Dulce respirava com ajuda de aparelhos, cujas luzes realçavam a penumbra. As mãos, bem inchadas pelos remédios, se destacavam . Silêncio total. Corremos para a emissora e a reportagem foi exibida depois de ser chamada por uma consternada Lilian Witte Fibe, que apresentava o telejornal. Poucos dias depois, Irmã Dulce morreu.

Mesmo esperada, a morte de Irmã Dulce causou uma grande comoção. Eram 4:45 da tarde do dia 13 de março, de 1992, quando ela se foi, aos 77 anos. Morreu no quarto, onde estive dias antes, cercada pelas irmãs do convento e pessoas que ela gostava. Três dias depois, uma multidão acompanhou a despedida em um cortejo da OSID até o altar do Santo Cristo, na Basílica da Conceição da Praia, na Cidade Baixa, onde o corpo da freira foi inicialmente sepultado. Eu, o repórter José Raimundo e a apresentadora Katia Guzzo fazíamos entradas ao vivo, durante a programação, além de reportagens para serem exibidas nos telejornais. Quando o corpo de Irmã Dulce estava sendo levado para o altar, eu segui junto. 

Na emoção, lembranças e ambiente de despedida, chorei junto com o povo e autoridades . Me lembro que, em determinado momento, recebi um abraço de consolação do então governador da Bahia, Antônio Carlos Magalhães, que estava aos prantos. Vale lembrar que, nesta época, eu sempre fazia reportagens e entrevistas com ACM, o que proporcionou uma boa relação entre nós. Em anos anteriores, eu e ACM tivemos alguns entreveros públicos que ganharam repercussão em todo país. Temas para um próximo “Até você, Casé?!.”

 Depois da cerimônia na igreja, nós continuamos com entradas ao vivo mostrando a movimentação em frente à Conceição da Praia. Entre um link e outro, o tempo livre era para atualizar as informações, produzir entrevistas e conversar com os colegas de plantão. Eu resolvi subir no teto da van de externa da emissora, a  unidade móvel, para ver o visual do alto. De repente, me chamam. Estava na hora de voltar a entrar ao vivo. Na pressa, eu pulei de vez do teto da van. Senti a perna doendo, mas continuei trabalhando até o ínicio da noite. Quando cheguei em casa, vi que a  perna direita estava muito inchada e tive que procurar  uma clínica ortopédica no bairro do Canela. O médico que me atendeu ficou impressionado como eu consegui suportar a dor durante tanto tempo. Tinha fraturado a perna e fiquei no gesso por mais de um mês. Neste tempo, recebi dois convites: um para ser professor de repórter em Angola e outro para ser assessor de deputado. Assuntos que também ficam para as próximas colunas…

Católico ou não, com fé em Nossa Senhora, com  Oxóssi na linha de frente e Ogum fortalecendo a proteção, filho de Stela, admirador do trabalho de Divaldo Franco, crente no que é bom e harmônico, eu conversei, beijei, pedi conselhos, comi junto, sorri e chorei com uma mulher que hoje é Santa. Salve Santa Dulce dos Pobres! Obrigado e nos ilumine!

 

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