1,64m de altura. Uma medida que parece se desmentir no palco e na carreira grandiosa, em todos os sentidos, de Maria Bethânia Viana Teles Veloso. Bethânia extrapola limites e definições. Sempre foi assim. É impossível ficar indiferente quando ela aparece. Goste-se ou não, o domínio do espaço é todo dessa mulher que, aos 17 anos, deixou Santo Amaro da Purificação para substituir Nara Leão e conquistou todo o país com um canto rasgado e áspero no contralto. Ela não voltou para a cidade natal, mas até hoje não dispensa o fevereiro na cidade do Recôncavo baiano.
Maria Bethânia é o tema dessa coluna e, desde já, me perdoem qualquer exagero nos elogios, endeusamentos, “rasgação” de seda. Tudo aquilo típico de um fã que admira o seu artista. Eu não só admiro. Eu adoro ela! É a minha Berré, como eu tenho a ousadia de chamá-la, depois que a conheci bem de perto.
Eu tinha 14 anos quando assisti ao primeiro show de Maria Bethânia. O espetáculo “Drama 3º ato - Luz da Noite” iria estrear no Teatro Castro Alves. Minha irmã, a socióloga e poetisa Magda Maria Cardoso, tinha comprado dois ingressos para ela e o marido, o queridíssimo e saudoso filósofo e professor Fernando Rêgo. Em uma feliz curva do destino, Fernando não quis ir e eu fui no lugar dele. A partir daí, o amor Bethânia pintou de vez e dura até hoje.
Como em todo show de Maria Bethânia, o TCA estava lotado. Ficamos na primeira parte do teatro, lá pela fila L. As cortinas se abrem e a banda Terra Trio toca e entoa “Movimento dos Barcos”, de Jards Macalé. Minutos depois, a voz de Bethânia estremece o TCA no canto de “Baioque”, de Chico Buarque, e nos aplausos da plateia. A mágica aconteceu. Claro que eu já conhecia Maria Bethânia, apesar da preferência adolescente da época ser trilhas internacionais de novelas que embalavam as festas com luz negra e o contraste luminoso de perfume Contourê no corpo (quem é daquela época vai entender melhor). Mas a entrada dela no palco, a voz, o gestual, as canções e os poemas do show me abriram um novo caminho artístico, musical, cultural.
Em determinado momento do show, eu estava tão impressionado; e preso ao que acontecia no palco; que cheguei a pensar que o cheiro gostoso do perfume que sentia vinha dela. Cai na real e lembrei-me que a distância não possibilitava essa proximidade olfativa. Mas a mágica sim. A presença dela entrava pelos olhos, bocas, narinas e orelhas.
Esse show teve como base o disco “Drama”, produzido pelo irmão Caetano Veloso, e foi gravado ao vivo no Teatro da Praia, no Rio de Janeiro. Logo após ser lançado, eu comprei e ouvia, e ouço, lembrando o “primeiro encontro” com a maior cantora do Brasil (de todos os tempos!) Eu tinha apenas 14 anos e não me passava pela cabeça ser jornalista. A profissão me proporcionou várias reportagens e entrevistas especiais com Bethânia. Momentos legais e, para mim, intensos. Desde a primeira vez, nossos santos se bateram em uma combinação mútua de respeito, amizade e muito carinho. Como diria a própria cantora, isso é muito grande para mim.
Eu já fui a quase todos os shows de Bethânia. Alguns, cheguei a ir três noites seguidas, como “Imitação da Vida”, em 1996, um dos espetáculos mais elogiados pelo público e crítica da história da MPB. Foi mais uma homenagem que ela fez ao seu poeta preferido, Fernando Pessoa, e seus heterônimos. Um dia antes da estreia, eu conversei com ela, no TCA. Falamos da poesia de Pessoa e do sambista baiano Batatinha, o autor da música “Imitação da Vida”, o nome do show e da música que ela abria cantando, antes de entrar no palco com aquela “corridinha” que era a marca dela, assim como os pés descalços. Nessa entrevista, fiz o chamado “Questionário Proust”. Aquele, muito usado pela jornalista Marilia Gabriela.
Eu: uma cidade?
Ela : Duas - Santo Amaro e Paris.
Eu: uma palavra.
Ela: namorar.
Eu: um sabor.
Ela: de siriguela.
Depois, caímos na risada pelas perguntas e respostas.
Outro show antológico foi “Brasileirinho”, de 2004. Nele, conviviam com harmonia composições como as Bachianas, de Villa Lobos, que abriam o show, e “Miséria”, dos Titãs. Na época, Bethânia me disse ser um espetáculo com um olhar intimista, voltado para a nossa brasilidade. Brasileirinho foi umas das coisas mais lindas que já vi. Me emocionou muito mais do que assistir aos shows de dois artistas que também adoro: Elton John e Roger Waters, do Pink Floyd. A comparação é proposital para você ver a que ponto chega a minha admiração por Maria Bethânia.
Nessas boas coincidências da vida, em viagens que fiz por outros países, o canto de Bethânia surgia em bares, restaurantes e até elevadores (na França!). Brasileirinho movimentou a cultura brasileira não só pela excelência do show. Foi nesta época que Maria Bethânia optou por mais liberdade fundando a gravadora Quitanda, ligada à empresa Biscoito Fino. Nunca Bethânia gravou algo para agradar a donos e empresários de gravadoras e ao chamado mercado. Prova disso é que ela não se resumiu ao canto agreste e de protesto de “Carcará”, no teatro Opinião. Ela foi para o samba de Noel Rosa e outros caminhos mais românticos. Uma das suas grandes características é a liberdade na escolha do repertório, sem amarras comerciais. Isso a engrandece. Por isso, “Quitanda”. O nome remete à infância e parte da adolescência na mesa farta da casa de Dona Canô.
Em outro show, "Tempo, Tempo, Tempo", me lembro que Bethânia foi aplaudida fortemente, em cena aberta, logo após cantar o “Samba da Benção”, de Baden Powell e Vinicius de Moraes. O poeta foi o homenageado daquele show, baseado no disco “Que falta você me faz”, que ela tinha acabado de gravar. Bethânia declamava um texto sobre os compositores brasileiros, como Chico, Caetano, Gonzaguinha, Gil, entremeado pela saudação do candomblé “Saravá”. A artista comemorava 40 anos de carreira. No final do texto, saudava a plateia e arrematava dizendo que só estava começando. No TCA, foram cerca de 5 minutos de aplausos de uma plateia de pé e emocionada. Na saída do show, encontrei o jornalista Carlos Libório, então gerente de jornalismo da Tv Bahia, que me disse nunca ter visto “tantos 'Bethanólogos' juntos de uma vez”. Me senti um deles, claro.
A entrevista que fiz com Bethânia sobre esse show foi no primeiro piso do antigo Trapiche Adelaide, na Cidade Baixa, um dia antes da estreia. Abri a reportagem com ela, de óculos com lentes rosa e meio transparentes, olhando para o mar da Baía de Todos os Santos, uma das paixões da vida da cantora. Ela tinha acabado de participar da missa em homenagem à Nossa Senhora Aparecida, no Santuário, no interior de São Paulo. Disse que se lembrou de mim e me trouxe um presente: um terço da Padroeira do Brasil, banhado a ouro, que até hoje guardo como se fosse uma joia valiosa. E é!
Outro presente que ganhei de Maria Bethânia foi também muito valioso, mas não deu para guardar: um beijo na boca. Assunto para colunas que virão...