Em tempos de vigilância dia e noite, noite e dia, em tempos em que o Grande Irmão está definitivamente instalado, ninguém mais escapa da sombra. Nem adianta correr das redes sociais, agora é tarde. Até sua laringe está sendo rastreada.
De uns tempos pra cá, a moda agora é dar plantão nos aeroportos mais movimentados do Brasil, construir verdadeiras barricadas pra impedir que artistas, celebridades e sub, tentem escapar do crivo "simpatia".
Negócio seguinte: uma horda de gente que não tem o que fazer se instala no saguão dos aeroportos com câmera de celular em punho e fica esperando o artista desavisado passar.
Assim que ele(a) se aproxima, corre em sua direção, e testa o queridômetro. Ai dele, ou dela, se não responder simpática ou educadamente a esses fiscais do bom humor alheio.
E dá-lhe pergunta imbecil. Bom, a gente sabe que a verdadeira simpatia dos artistas (de forma geral) acontece quando acende o holofote.
Mas todo mundo tem o direito de não ser bem-humorado 24 horas por dia. Tem o cansaço, a fome, a tristeza, a dor, a pressa, a indisponibilidade de conversar, a agonia, o desejo de não ser importunado, a dor de barriga, de cabeça, a vaidade.
Tem a turbulência, as selfies, a conversa desagradável, a falta de respeito, a vontade de chegar em casa ou no trabalho, o fato de estar atrasado, o amado, ou a amada, esperando flores e bombons.
Mas o artista, para essa gente inútil, não tem nenhum direito, a não ser o de ser simpático, amável e divertido todo o tempo. Afinal, somos nós que sustentamos suas carreiras, diriam alguns desses desprezíveis seres.
Muito mais do que estar na presença do artista, o que essa gente quer é testemunhar e mostrar à humanidade que aquela criatura só é simpática em Ana Maria Braga. O execrável tribunal da internet.
A afabilidade e o bom humor não vêm cravados na célula. A vida propicia momentos em que é possível sorrir ou chorar, gritar ou sussurrar, correr ou andar, amar ou odiar.
Tá tudo aí dentro de você. Às vezes, basta um respingo fora do lugar para a torneira entornar. Somos seres complexos e cheios de idiossincrasias. Deixem os artistas em paz.
Eles, de fato, não se esmeram em retribuir gentilezas ao povo comum, mas isso não os torna mais ou menos talentosos. Vamos focar na obra.
Não importa se um artista é republicano, desde que ele exerça seu talento com vigor e nos emocione em cada cena. Para quem lida com letras e canções é mais complicado porque acaba resvalando o coração fóbico.
Um artista simpático e agradável faz com que sua obra, seu talento engradeça enormemente. Isto é inegável. Mas é preciso entender que o bom humor está diretamente atrelado às desavenças, ou não, do trajeto percorrido ao acordar.
Há um lindo dia de sol ou uma tempestade desastrosa. Um trânsito que flui ou um engarrafamento que trava. Uma relação que inicia, uma que termina. Alguém que nasce, outro que morre.
É a vida testando nosso comportamento e dizendo: hoje não precisa sorrir, a dor é legítima, mergulha nela. Não importa os fiscais do bom humor, eles passarão.
E como diria o grande Nelson Rodrigues, os idiotas vão tomar conta do mundo, não pela capacidade, mas pela quantidade.